25 de novembro de 2014

Como no século 17


Rosane Garcia

Passados mais de três séculos, Zumbi está vivo entre os negros brasileiros, principalmente no meio daqueles que vivificam o Dia Nacional da Consciência Negra — 20 de novembro —, agora, uma data reconhecida pela Lei nº 12.519, de 10 de novembro de 2011. Em 319 anos, desde a dizimação do Quilombo do Palmares, com a morte do líder dos negros insurgentes, o Brasil não conseguiu superar as diferenças. O país ainda cultiva sentimentos e atitudes que não guardam nenhuma relação com a condição de ser humano. As diversas cores dadas à consciência mostram o quanto as pessoas são capazes desumanizar umas as outras, amparadas em valores rasteiros, como o racismo, os preconceitos e a discriminação socioeconômica.

No século 21, ainda vigoram costumes (im)próprios dos anos 1600. Temos cidadãos submetidos à condição de escravos pelas castas dos mais diferentes setores do poder econômico. Em 2014, a Divisão de Fiscalização para Erradicação do Trabalho Escravo, do Ministério do Trabalho e Emprego, resgatou 423 trabalhadores em situação análoga à de escravos. De 1995 a julho último, foram libertadas do regime de servidão 46.927 pessoas pelos fiscais do governo federal. Os dados oficiais nem sempre retratam com fidelidade a realidade, mas compõem uma mostra expressiva da iniquidade existente no interior do país, patrocinada pela produção de carvão e pelo agronegócio, cujos lucros são, a cada ano, mais volumosos e de grande importância para o equilíbrio da balança comercial.

O aviltamento à cidadania vem se alastrando também, de forma despudorada, pelos centros urbanos, por meio de renomadas empresas dos ramos da construção civil, da alimentação e do setor têxtil, que abastecem famosas grifes instaladas nos mais sofisticados centros de consumo de Brasília, Belo Horizonte, São Paulo, Rio de Janeiro, entre outras capitais. Em 2013, dos 151 estabelecimentos ficalizados, 64 eram urbanos e, desses, em 51 foram libertados 1.298 trabalhadores.

Hoje, diferentemente do século 17, o tráfego de mão de obra não tem como mercado preferencial os países africanos. Ao lado dos negros, são exploradas pessoas de outras etnias em situação de vulnerabilidade socioeconômica nascidas no Brasil e em países vizinhos, como no Peru, no Paraguai, na República do Haiti, na Bolívia e na Argentina. Assim, os motivos que levaram Zumbi a construir o maior espaço de resistência contra a coisificação do humano têm pleno sentido na atualidade. A falta de consciência humana é crescente, frente à ganância desmedida e à incapacidade dos poderes do Estado em dar uma resposta rápida e com o rigor devido aos setores produtivos que tornam as pessoas força motriz para a expansão do lucro.
.(Artigo publicado na edição de 24 de novembro de 2014 do jornal Correio Braziliense)

25 de março de 2014

# Somos todas Cláudias

Hoje, ato em repúdio ao racismo e à violência racial

Com choque e revolta, nós, diversas mulheres negras em todo o Brasil, recebemos a notícia da morte de Cláudia da Silva Ferreira. Cláudia era moradora do Morro da Congonha, em Madureira, na cidade do Rio de Janeiro. Tinha 38 anos, trabalhava como auxiliar de serviços gerais, era mãe de 4 filhos e casada. No domingo, dia 16/03/2014, foi alvejada enquanto ia comprar pão para a sua família. A polícia, que estava presente e participou do tiroteio, pegou Cláudia ferida e coloco-a na traseira do camburão, alegando que ela seria encaminhada a uma unidade de saúde. Contudo, ao longo do percurso, o porta-malas da viatura abriu e Claudia foi arrastada no asfalto por 250 metros.

Cláudia foi morta diante de sua família e de sua comunidade. Os policiais que prestaram esse tratamento à Cláudia estão aguardando julgamento em liberdade. A Presidenta prestou discretas condolências e algumas autoridades prestaram palavras de solidariedade. Porém, infelizmente nomes como o de Cláudia Silva Ferreira, vítimas da violência estatal contra mulheres negras, são rapidamente esquecidos pela mídia e por representantes da sociedade no poder político.

Para nós, que temos a cor, a trajetória de vida, as famílias e os endereços similares aos de Cláudia, fica essa dor, essa angústia da ausência de respostas estruturais para um problema que sistematicamente massacra nossas famílias, nossas carnes, nossas cores.

Sobra essa sensação continua de repetição, de mais um ou uma, da nossa morte iminente. Todas nós nos sentimos agora presas a esse camburão, tendo nossa cara arrastada nessa avenida de desalento que é ser mulher negra no Brasil.

A morte de Cláudia foi premeditada e proposital. Ela já foi autorizada reiteradamente pela sociedade que naturaliza morte de pessoas negras, que permite que as forças de segurança atirem agora e nunca perguntem, que sequestram comunidades inteiras e as mantêm em cárcere dentro de suas casas, por medo de serem “confundidas com bandidos”, porque no Brasil, ser bandido é ter uma cor, e a pena para a cor é a morte.

O racismo matou Cláudia, mas não só o dos policiais que executaram essa ação. A ação foi feita, também, por todos que se omitem quando casos como esse se repetem cotidianamente no país, por quem autoriza operações sanguinárias em comunidades, por quem permite esse tipo de tratamento dispensado a pessoas negras pelas forças de segurança, por quem não investiga mortes cometidas por policiais.

Contudo, nós, as outras Cláudias, que ainda estamos vivas, não vamos nos calar. Enquanto estivermos aqui, seguiremos denunciando a violência estatal contra pessoas negras. E convocamos quem não compactua com o racismo a comparecer.

Por isso, convidamos todos para o ato Somos Todas Cláudias, hoje (25/3), a partir das 17h, na Praça Zumbi dos Palmares em frente ao CONIC.

Em nome de Cláudia e de todas as mulheres e famílias negras vitimadas cotidianamente pela violência, convocamos este ato:

* Pela investigação dos homicídios praticados por policiais e extinção dos autos de resistência;

* Pela desmilitarização da polícia;

* Pelo combate ao racismo institucional em TODAS as instâncias do Estado Brasileiro;

* Por uma política de pacificação que não represente o SEQUESTRO de toda uma comunidade por uma polícia racista e violenta;

* Por uma reparação financeira e simbólica à família e comunidade de Cláudia, e de todas as vítimas da violência estatal.

18 de março de 2014

O DF é 57% negro


 Rosane Garcia

No passado, a palavra “pardo” substituiu as expressões “crioulo”, “preto” e “negro” nas referências aos não brancos de ascendência africana. Ela ficou tão arraigada entre as pessoas, que os negros a usavam para definir a própria origem étnica, apesar de poucos saberem o significado do que era ser pardo. Até mesmo nos documentos oficiais (Certidão de Nascimento, Carteira de Identidade), a cor do indivíduo era parda.

Estudo da Companhia de Planejamento do Distrito Federal (Codeplan), intitulado Análise das Relações de Raça/Cor, com base na Pesquisa Distrital por Amostra de Domicílios (Pdad 2010-2011) mostrou que 57,52% dos 2,3 milhões de brasilienses são negros. Eles são maioria em 17 das 31 regiões administrativas. Em todo o país, os afrodescendentes somam 51%. Ou seja, no DF, eles superam a média nacional. Mas esse não é único fenômeno revelado pelo estudo. Para surpresa dos pesquisadores, os jovens do DF se autodeclaram negros, sem qualquer constrangimento.

Com mesma intensidade emergem desse cenário as contradições, que ressaltam as desigualdades e reforçam estereótipos. O negro brasiliense é maioria em relação aos não negros nos segmentos com menor renda e escolaridade. Embora a capital do país tenha pouco mais de meio século, as diferenças socioeconômicas impõem profundos desafios ao Estado, na formulação de políticas públicas que eliminem as diferenças entre os afrodescendentes e o restante da sociedade. Nesse ambiente de desigualdade, eles têm sido o segmento mais vulnerável. De acordo com o Mapa da Violência 2013, no DF e no Entorno, quase 90% das vítimas de mortes violentas são negros de 15 a 29 anos.

A cobrança por políticas voltadas aos negros vai além daquelas que assegure a inserção dele nas universidades ou combata o racismo e a discriminação. A demanda é por políticas sociais integrais que interfiram na qualidade de vida do indivíduo e garantam educação para a cidadania.
(Artigo publicado na edição de 17 de março do jornal Correio Braziliense)

Democracia racial ainda é uma farsa

Rosane Garcia

No Distrito Federal e no Entorno, quase 90% das vítimas de mortes violentas são homens negros de 15 a 29 anos, conforme o Mapa da Violência 2013, elaborado com base em estudo do Ministério da Saúde. Não é exagero afirmar que, em relação a qualquer outro grupo étnico, o dado indica que estamos diante de um processo genocida. Mas, como se trata de negros, as evidências são diluídas em meio a conclusões que relegam a plano inferior o que é cristalino mesmo aos que têm pouca visão.

Esse processo de violência vem crescendo. Quando ele não se expressa pelo ataque com armas letais, avança nas agressões verbais, a fim de impor uma condição de inferioridade, que não existe, aos negros. Manifesta-se ainda pelo bloqueio de oportunidades sociais e econômicas.

Poucas semanas atrás, uma australiana expeliu toda a sua repulsa aos afro-brasileiros ao ofender uma manicure. No Rio de Janeiro, um ator negro foi confundido com um assaltante e amargou 15 dias de cadeia. Diante do depoimento da vítima, que fora assaltada por um homem negro, o primeiro que passou diante de agente policial se tornou culpado. Não houve esmero na apuração, pois o fato de ter a pele preta torna o indivíduo culpado. Na semana passada, o noticiário esportivo destacou as manifestações de racismo contra um árbitro e trouxe à tona situações vexatórias impostas a ídolos do futebol e de outras práticas esportivas que são negros.

Matar ou cometer o crime de injúria racial significa que a decantada democracia racial brasileira nunca deixou de ser uma farsa. O Estado não admite o extermínio deliberado de afro-brasileiros, motivado pelo racismo, para fugir de embaraços diplomáticos. Mas a segregação está presente nas relações sociais e divide fortemente os grupos étnicos que vivem no país, com graves prejuízos aos afrodescendentes.

Na última década, o governo federal reconheceu ─ não como esperava a maioria dos negros  ─ a necessidade de estabelecer políticas públicas para os afrodescendentes. A mais polêmica medida foi as cotas para acesso às  universidades federais. Mas, há de se convir, que essas ações estão muito aquém das exigências reais do povo negro do Brasil, cuja vida está ameaçada.

[Texto publicado na edição de 10/3 do jornal Correio Braziliense]